Por Suzana Herculano-Houzel
Há duas semanas o assunto científico da vez foi a imagem inédita de um buraco negro, tal qual predito pela física; mais recentemente, foi a vez do cérebro de porco mantido razoavelmente vivo em laboratório pela equipe do neurocientista Nenad Sestan, na Universidade Yale, nos EUA. Ambos trabalhos fazem história e ambos foram amplamente financiados pelo governo estadunidense com dólares de impostos —o primeiro pela National Science Foundation, e o segundo pelo National Institutes of Health, equivalentes do CNPq brasileiro. Bom, equivalentes em missão.
Sestan e sua equipe multidisciplinar fizeram o que boa parte dos neurocientistas faz em algum ponto de suas carreiras: colheram o cérebro de um animal recém-abatido. Mas eles foram além e fizeram o que só pesquisadores estabelecidos e que contam com todo o apoio logístico e financeiro da sua instituição e governo podem fazer: ousaram abordar uma pergunta do tipo “E se…”, que por enquanto não resolve absolutamente nada (muito pelo contrário).
E se, em vez de dar este cérebro por morto e congelá-lo, fatiá-lo, picotá-lo, processá-lo como normalmente se faz para estudá-lo, nós o mantivéssemos com nutrientes, oxigênio, e até mesmo circulação pulsátil, tudo a 37ºC? Seria possível manter ao menos algumas células vivas e funcionando?
A parte que me intriga é o espanto que surgiu quando a resposta foi “sim, é possível manter o tecido cerebral vivo após a morte”. A humanidade faz transplantes de coração há mais de 50 anos, o que obviamente só é possível porque o órgão vive mesmo após retirado do corpo, e por várias horas. Fígado, rins, pele, córnea: desde a invenção da ventilação mecânica, necessária devido à epidemia de poliomielite, sabemos que a morte do todo não é a morte das partes.
Há cerca de duas décadas que a neurociência usa fatias finas de cérebros mantidas vivas em cultura por algumas horas, uma técnica que tornou possível estudar a atividade de neurônios dentro de circuitos locais. Neurônios são sensíveis à falta de oxigênio, sim, tanto que a falta de ondas cerebrais nos cérebros colhidos por Sestan muda seu estado legal para mortos. Mas, com as condições certas, Sestan e equipe mostraram que o tecido ainda íntegro tem, sim, uma certa capacidade de permanecer em funcionamento.
Se isso muda a definição de morte? Nem um pouco: morremos quando o cérebro para de funcionar como um todo. Mas a possibilidade de um cérebro estar ao mesmo tempo vivo e morto é um excelente lembrete de que a vida é complexa.
Fonte: Folha de S. Paulo