Quando o assunto é a obesidade, de imediato, associa-se o problema ao hábito de comer sem controle. Mas, apesar de a alimentação ser um fator-chave no ganho de peso, cientistas têm mostrado que há a interferência de outros mecanismos, sendo alguns cerebrais. Uma pesquisa da Universidade de Medicina Johns Hopkins, nos Estados Unidos, mostra que, em crianças, a falta de saciedade pode ser provocada por fatores genéticos e falhas em atividades neurais. Outra, da Universidade de Dartmouth, também norte-americana, avalia como as propagandas de alimentos mexem com o cérebro dos pequenos. Os estudos recentes, dizem os autores, contribuem para uma visão mais abrangente da obesidade e para o desenvolvimento de medidas mais eficazes de combate e tratamento.
Para entender melhor o papel do cérebro na fome insaciável, a equipe liderada por Susan Carnell, de Johns Hopkins, analisou 36 adolescentes — metade obesa e a outra, magra. O segundo grupo, sem problemas com a balança, foi composto por indivíduos com risco genético para ter obesidade e livres da herança de DNA ligada à doença. Todos os voluntários sofreram uma espécie de varredura cerebral, feita com aparelho de ressonância magnética enquanto liam cardápios que descreviam alimentos distintos — alguns ricos em gordura, como asas de frango, e outros com baixo teor de gordura, como couve-de-bruxelas. No experimento, os jovens tiveram que classificar o quanto cada descrição provocava o apetite deles.
Segundo os pesquisadores, durante a leitura, todos os voluntários tiveram a ínsula e o córtex anterior cingulado estimulados. São áreas do cérebro que estão ligadas, respectivamente, à recompensa e à emoção. Em adolescentes com excesso de peso ou magros, mas com alto risco familiar de obesidade, no entanto, observou-se também a redução da atividade do córtex pré-frontal dorsolateral, do córtex cingulado anterior dorsal e dos núcleos dos gânglios basais, ligados ao autocontrole.
Depois do experimento, os participantes foram convidados para um bufê composto por alimentos ricos e pobres em calorias. Os pesquisadores usaram a ocasião para verificar se as respostas no teste correspondiam ao comportamento dos jovens. Da mesma forma que no monitoramento cerebral, aqueles com excesso de peso comeram mais, seguidos dos adolescentes magros que tinham alto risco de sofrer de obesidade e, por último, do grupo de baixo risco (magros sem propensão genética).
“Nossos resultados sugerem que somos capazes de prever quais adolescentes se tornarão adultos obesos analisando como o cérebro deles reagem quando leem um menu. Para mim, é notável que consigamos observar esses efeitos apenas com os participantes analisando uma lista com palavras como batatas fritas e chocolate derretido”, explica Susan Carnell, também professora-assistente de psiquiatria e ciências comportamentais da universidade.
A pesquisadora e sua equipe acreditam que os dados podem ser usados no aperfeiçoamento de intervenções que contenham ou previnam o excesso de peso na juventude. “Não estamos sugerindo que devemos escanear o cérebro de todos os adolescentes, o que não seria prático ou econômico, mas nossas descobertas sugerem que os tratamentos e as intervenções de prevenção destinados a fortalecer o sistema de autorregulação podem ser mais úteis que os programas típicos, que são concentrados na dieta e na atividade física e não têm sido muito bem-sucedidos”, defende Carnell.
Multifatorial
Cristiane Moulin, endocrinologista da clínica Metasense, em Brasília, e doutora pelo Grupo de Obesidade e Síndrome Metabólica da Universidade de São Paulo (USP), avalia que o trabalho norte-americano avança na compreensão da realidade multifatorial da obesidade. “Tivemos a genética. Agora, também contamos com dados relacionando atividade cerebral e alimentação exagerada. Essas informações ajudam a entender por que pessoas que fazem muito exercício e também dietas não conseguem emagrecer”, explica.
A endocrinologista também ressalta que os dados ajudam a acabar com um estigma relacionado à doença. “Muita gente fala que é falta de vontade ou preguiça de quem sofre com o problema, mas vemos, com pesquisas como essa, que não tem a ver. É a predisposição genética e a falta de controle que fazem com que o indivíduo não consiga”, diz Moulin.
Segundo a médica, um melhor entendimento do problema permitirá a oferta de tratamentos mais completos e eficientes contra a obesidade. “Sabendo desde a infância desses problemas, a possibilidade de indicar um tratamento melhor, que envolva terapia, por exemplo, e que já se mostrou eficiente, pode render resultados mais positivos. Quanto mais conhecimentos nós tivermos do que está alterado ou não no organismo, maior será a perspectiva terapêutica”, explica.
A força das imagens
Propagandas de alimentos que, à primeira vista, parecem inocentes, podem contribuir para a obesidade. Isso porque influenciam diretamente no cérebro de pessoas predispostas geneticamente a sofrer com a doença. É o que mostra um grupo de cientistas da Universidade de Dartmouth, nos Estados Unidos, em um experimento envolvendo 78 crianças, meninos e meninas, com idade entre 9 e 12 anos.
Os jovens foram monitorados por aparelhos de ressonância magnética enquanto assistiam a um programa de televisão infantil que, a cada 12 minutos, era interrompido por anúncios de fast food e outras propagandas de produtos não alimentares. Eles também foram avaliados quanto ao risco genético, com base no gene associado à obesidade (FTO). Como resultado, os investigadores observaram que o núcleo accumbens — região do cérebro associada ao desejo da recompensa —, além de se mostrar maior fisicamente em crianças com o genótipo FTO, tinha maior atividade no accumbens quando eles assistiam aos comerciais de alimentos.
“Ao examinar o cérebro que ainda está se desenvolvendo e suas estruturas relacionadas à recompensa, nossas descobertas ajudam a explicar por que as crianças que são geneticamente propensas correm risco maior de ter obesidade, sendo assim mais predispostas a comer alimentos pouco saudáveis”, explica Kristina M. Rapuano, pesquisadora do Departamento de Ciências Psicológicas e do Cérebro da Universidade e uma dos autores do estudo, publicado na revista Proceedings of the National Academy of Sciences (Pnas).
Os investigadores destacam que os achados servem como alerta para mudanças quanto às informações que são recebidas pelas crianças. “Cerca de um terço dos comerciais que elas veem é propaganda de alimento. Nós sabemos também, com base em trabalhos anteriores, que as crianças com o fator de risco de obesidade genética são mais propensas a comer demais depois de assistirem a anúncios de comida na tevê, mesmo quando não estão com fome. Limitar a exposição às propagandas de alimentos pode ser uma maneira eficaz de combater a obesidade infantil”, ressalta Diane Gilbert-Diamond, professora-assistente de Epidemiologia na universidade e também participante do estudo.
Dependência
Para Thiago Blanco, psiquiatra infantil e professor do curso de medicina da Escola Superior de Ciências da Saúde (ESCS), a pesquisa traz informações interessantes, que têm sido observadas na área médica e reforçam como o comportamento alimentar pode ser influenciado por diversos fatores. “Temos visto como os transtornos alimentares se aproximam da dependência química. São mecanismos semelhantes aos de outros tipos de vício, já que todos estão ligados ao sistema de recompensa do cérebro”, completa.
Blanco também acredita que os achados norte-americanos ressaltam a necessidade de cuidados voltados aos indivíduos predispostos a ganhar peso. “Sabemos que pessoas que têm uma carga genética para a obesidade podem estar mais suscetíveis a imagens, a estímulos visuais. Esse é um alerta que serve principalmente para as autoridades que precisam cuidar da saúde pública, mas também para a família, que precisa estar atenta às informações direcionadas aos seus filhos”, defende.
“Não estamos sugerindo que devemos escanear o cérebro de todos os adolescentes (…) mas nossas descobertas sugerem que os tratamentos e as intervenções de prevenção destinados a fortalecer o sistema de autorregulação podem ser mais úteis que os programas típicos”
Susan Carnell, pesquisadora da Universidade de Medicina Johns Hopkins
Sono é amigo da balança
Uma boa noite de sono pode ajudar a combater o excesso de peso em crianças. Cientistas da Universidade de Illinois, nos Estados Unidos, analisaram a rotina de 337 meninos e meninas em período pré-escolar e da família deles. Os pesquisadores contabilizaram as horas que os pais, as mães e as crianças dormiam e concluíram que as crianças que dormiam 10 horas ou mais apresentavam menos riscos de ter obesidade.
Outro fator que chamou a atenção foi que a quantidade de horas que os pais dormiam estava relacionada à quantidade de sono dos pequenos. “Os adultos devem fazer com que o sono seja um valor familiar e uma prioridade. As rotinas de sono em uma família afetam todos os membros, não apenas as crianças. Sabemos que os pais não terão boa noite de sono a menos que as crianças durmam bem, e isso gerará uma saúde com mais qualidade, com menos acúmulo de gordura, por exemplo”, ressalta Barbara H. Ciese, diretora do Centro de Resiliência Familiar da Universidade de Illinois e uma das autoras do estudo, publicado no periódico Frontinos in Psicologa.
Palavra de especialista
“A Organização Mundial da Saúde, entre outras entidades, entende que a obesidade deve ser combatida na infância, em razão da alta probabilidade de que a doença permaneça até a idade adulta. Os estudos sobre a obesidade infantil e o contexto de alimentação da criança mostram que existem modelos de prevenção e tratamento com foco na identificação e na modificação do ambiente da criança, principalmente os ambientes familiar e escolar. O projeto de pesquisa sobre obesidade infantil desenvolvido na Universidade Católica de Brasília é justamente voltado para famílias de crianças obesas e vem apresentando bons resultados. Pesquisas indicam que a família tanto pode favorecer o surgimento da obesidade infantil quanto ser a chave para uma intervenção eficaz de combate à doença. Mas, apesar dos avanços, temos consciência de que ainda há muito o que ser estudado.”
Vladimir Melo, mestre em psicologia pela Universidade Católica de Brasília e autor do livro Obesidade infantil: interações familiares e ciclo de vida numa perspectiva sistêmica
Fonte: Correio Braziliense