Memória de uma neurocirurgia

Passava das três da manhã da segunda-feira quando algo acordou Silvia. A seu lado, seu companheiro Murilo Mendes, 32 anos, convulsionava. Ela nunca havia presenciado aquela cena, mas não tinha nenhuma dúvida de que se tratava de algo sério.

Assustada, assegurou-se de que a cabeça dele estivesse de lado, uma das orientações principais para quem presencia um problema do tipo. Toda crise não durou mais de um minuto. Parece pouco, mas Silvia não imaginava que aquela cena descortinava um drama que duraria dois arrastados meses.

Após o ocorrido, Silvia ligou para os pais de Murilo. A primeira lembrança que ele tem daquela noite é de meia hora depois, quando percebeu que seu pai e sua mãe estavam na sua casa no meio da madrugada. Murilo não conseguia entender o que havia acontecido. Também não recordava que havia trabalhado na FLIP (Festa Literária Internacional de Paraty), horas atrás, ajudando com as tarefas da editora em que é designer. Sua vontade era só voltar a dormir, mas a decisão era óbvia: saíram em disparada para o hospital.

“Tudo estava bem e, de repente, eu estava na UTI”. Após uma rápida passagem pelo pronto-socorro, veio a decisão de transferi-lo para a UTI (Unidade de Tratamento Intensivo). O motivo era o resultado da tomografia: uma mancha havia aparecido do lado direito do cérebro, a estrutura mais complexa do corpo humano, com 86 bilhões de neurônios. Provavelmente havia tido um sangramento. Era preciso investigar.

Após cinco dias na UTI, a experiência gerou uma ansiedade terrível. Era uma mistura de se sentir perfeitamente normal com a certeza de que algo estava errado no seu cérebro: “Ninguém me falava nada. E estar naquele lugar com pessoas no fim da vida, sem poder fazer nada, foi muito ruim para mim.”

Uma ressonância magnética confirmou o diagnóstico: aos 32 anos, Murilo descobriu que tinha um cavernoma cerebral.

No caso de Murilo, a convulsão não deixou sequelas. Ele descobriu ter um cavernoma único, no lobo temporal direito, que está relacionado à audição, memória e tem conexão com as vias ópticas. Depois de ser medicado com anticonvulsionante, teve alta e foi orientado a procurar um neurocirurgião.

A cirurgia é recomendada em casos de cavernoma com mais de 1,5 cm ou 2 cm, dependendo da localização e sintomas. O que Murilo carregava consigo media quase 3 cm. Apesar da ideia de ser submetido a uma microcirurgia cerebral despertar seus piores fantasmas, era necessário passar por isso.

“Se você escolhesse algo para ter no cérebro, seria isso”, disse Veiga a Murilo durante a consulta. Ele possuía um cavernoma único e provavelmente esporádico (ou seja, não na forma familiar), em uma região não muito profunda. A principal sequela que a cirurgia poderia trazer seria um déficit na visão periférica.

Cavernoma não é um tumor

Apesar do sufixo ‘oma’, que está tradicionalmente relacionado a tumores, o cavernoma não é um tumor. Faz parte do capítulo de malformações vasculares. E uma das boas notícias a que Murilo se apegava para manter a calma era que uma vez retirado totalmente, ele estaria curado. Mesmo arrasado emocionalmente, Murilo começava a acreditar na cura. Sua mãe, sua companheira e seu irmão (que também se amontoavam na sala do Dr. Veiga) sentiram o mesmo.

Como é o tratamento

Existem duas opções ao se descobrir o problema: operar ou observar. Uma das coisas que devem ser levadas em conta é a possibilidade do cavernoma sangrar novamente. “Se é um cavernoma assintomático, que está em local muito importante do cérebro, a chance de você tirá-lo e deixar um déficit no paciente é considerável, então a opção pode ser observar”, avalia Oliveira.

Ao escolher isso, é preciso muita atenção para o risco de sangramento anual, que é cumulativo. A possibilidade do cérebro sangrar novamente varia de 3% a 13%. “Mesmo 3% é algo considerável, se você pega um paciente que tem uma expectativa de vida de pelo menos mais 30 anos, a chance desse cavernoma sangrar é quase 100%”, completa

Há também a radiocirurgia, controversa justamente por usar radiação em células que são saudáveis. “Vários centros cirúrgicos sérios no mundo estão tratando cavernoma com radiação. E quando você incide radiação, infelizmente ela não vai só no alvo que você deseja, também atravessa tecido cerebral normal”, avalia Oliveira, que estuda cavernoma há mais de 15 anos.

O neuronavegador e a neurocirurgia

O procedimento para retirar cirurgicamente um cavernoma se dá por meio de uma craniotomia (a abertura do crânio) e uma microcirurgia vascular intracraniana. Após aberto o crânio é introduzido um microscópio e o cirurgião vê com dimensões ampliadas todas as áreas e os vasos. Isso permite que seja possível retirar a lesão sem danificar o tecido.

O médico usa um neuronavegador, um equipamento que utiliza as informações de estudos prévios de ressonância e tomografia e, por meio de infravermelho, consegue informar exatamente todos os tecidos que estão por baixo do crânio, transmitindo em tempo real a cirurgia. Isso faz com que o especialista consiga planejar a área com menor risco para acessar a lesão e o trajeto mais curto.

E aí surgiu um problema: uma semana antes da cirurgia de Murilo, o convênio não autorizou a compra do neuronavegador, pois seu uso na neurocirurgia não tem caráter obrigatório e por isso não há cobertura. Só que Veiga avisou Murilo que não opera sem o equipamento.

“É um absurdo. Sem o neuronavegador eu até posso localizar o cavernoma, mas vou ter que fazer uma abertura maior, vou ter que expor mais os tecidos, o que pode gerar mais infecção. Isso é uma questão de investimento em saúde, que infelizmente deixa a desejar.” Estava tudo em jogo novamente.

A virada no jogo

O alívio só veio a menos de 24 horas da cirurgia, quando a família de Murilo descobriu que era possível alugar um neuronavegador por conta própria, caso desembolsassem R$ 9 mil reais. “Por sorte, tínhamos condição de pagar, mas conheci gente que não teve”, lamentou o designer.

Murilo foi para a mesa de operação no dia seguinte e o procedimento levou cerca de três horas e meia. E foi um sucesso. O cavernoma foi totalmente dissecado. Agora era só recuperar. Ele estava curado. O pós-cirúrgico não costuma ter dor e a recuperação do paciente geralmente é rápida, por incrível que pareça. Dependendo da lesão, com extirpação total, em no máximo um mês ele pode voltar com as atividades normais.

Neurocirurgia em pessoas acordadas: como é  possível?

Você já deve ter visto vídeos na internet em que a pessoa passa por uma cirurgia acordada –e algumas tocam até violão! Isso é possível pois o cérebro em si não dói. Então, o médico consegue cortar tecidos e estimular regiões, coletando informações em tempo real do paciente.

“Existem indicações precisas para cirurgia com paciente acordado. Por exemplo, se ele tem uma lesão perto da área da fala e eu for operá-lo anestesiado, eu só saberei se a fala dele foi comprometida depois que a pessoa acordar da cirurgia”, conta Dr. Oliveira.

O paciente é despertado durante o procedimento, já com o crânio aberto e o cérebro exposto. Neste momento, a equipe médica estimula as áreas que julga ser da fala e vê se o paciente tem algum tipo de alteração. Retirada a lesão, o paciente volta a ser anestesiado para o encerramento. “Mas não é qualquer paciente que está apto e que tem estrutura emocional para este tipo de cirurgia”, alerta Veiga.

Além do neurocirurgião ter uma resposta em tempo real do paciente, as vantagens são usar menos anestésico, menor tempo de internação e melhor recuperação. “Ou seja, no final das contas, é mais econômica”, diz Veiga.

A vitória na cirurgia e o recomeço no jogo da vida

Curado, Murilo passou a ver o mundo de outra forma. Ele conta a abaixo o que mudou após a operação

“Meu tratamento teve o melhor desfecho possível e sei que estou curado, mas ainda não consegui sentir isso. Tudo o que passei deixou rastros, cicatrizes maiores do que a que está escondida debaixo de meus cabelos. Mas também tenho a certeza de que a doença ficou para trás, o que é um porto seguro.

Acho que a principal mudança que senti foi a de conseguir dar a dimensão real dos problemas da vida. Antes, eu ficava muito nervoso com pequenas coisas, por exemplo, se perdesse uma chave ou algum documento… Hoje, dou menos importância a esses contratempos do dia a dia.

Apesar de parecer contraditório com o que eu disse acima, fiquei mais ansioso, especificamente com relação ao meu corpo. Fico hipervigilante com minhas próprias sensações e desenvolvi um transtorno de estresse pós-traumático, com o qual ainda estou aprendendo a lidar. A sensação de que do dia para noite a gente pode ir parar no hospital é real e constante.

O que posso dizer também é que todos aqueles clichês de quem passa por situações semelhantes são reais. Hoje, aproveito e dou mais valor às pequenas coisas, como dirigir, sair para comer algo, tomar banho sozinho… Tenho uma lembrança de quando tive alta e voltei para casa. Desci do carro e senti o cheiro da rua. Foi demais. Essa é a memória que quero guardar da cirurgia.”

Fonte: VivaBem