O neurofisiologista Fulvio Scorza, coordenador do Laboratório de Pesquisa em Morte Súbita nas Epilepsias da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), está interessado em identificar as possíveis alterações moleculares que as crises epilépticas podem provocar no coração de ratos. Nos próximos meses, sua equipe realizará em 40 animais um longo processo de sensibilização do cérebro que leva os roedores a desenvolver epilepsia. O estudo deverá ajudar na investigação que ele faz há quase 15 anos sobre a causa das mortes associadas à epilepsia, especialmente a morte súbita e inesperada ou Sudep, na abreviatura em inglês, um problema poucas vezes citado pelos médicos nas consultas com pacientes e seus familiares. A suspeita é que a atividade elétrica anormal do cérebro durante as crises leve o coração a adoecer e, eventualmente, a parar de funcionar.
Scorza espera encontrar no coração desses animais algumas moléculas produzidas em níveis alterados que funcionem como sinalizadoras do dano cardíaco provocado pela epilepsia. Caso as identifique, como outros estudos já indicaram ser possível, e consiga quantificá-las por meio de um simples exame de sangue, ele, por fim, estará perto de um marcador de risco cardíaco específico para a epilepsia. Essa ferramenta, buscada nos últimos tempos por diferentes grupos internacionais, pode ajudar a conhecer quais são as pessoas com essa enfermidade neurológica que apresentam maior probabilidade de sofrer uma parada cardíaca durante uma crise epiléptica. “Se formos capazes de identificar esses pacientes, podemos orientá-los a passar por um acompanhamento cardiológico mais rigoroso ou, quando for o caso, indicar ao neurologista a necessidade de alterar a medicação para o controle das crises”, explica o pesquisador.
Estudos internacionais indicam que a Sudep responde por algo entre 8% e 17% das mortes entre indivíduos com epilepsia. O que mais surpreende e intriga, no entanto, é que suas vítimas em geral têm menos de 40 anos e não apresentam problema de saúde além da epilepsia.
Algumas estimativas indicam que, em média, uma em cada mil pessoas com epilepsia sofre morte súbita. Se esses dados valerem para o Brasil, onde cerca de 2 milhões de pessoas (1% da população) têm epilepsia ativa, a projeção é que ocorram por aqui 2 mil casos de Sudep por ano. Especialistas suspeitam que a parada do coração seja a causa imediata de uma parcela relativamente grande desses óbitos. “Calculo que, em um terço dos casos, a morte súbita seja decorrente de arritmia e posterior parada cardíaca”, afirma o neurologista brasileiro Josemir Sander, uma das mais importantes referências internacionais na investigação da Sudep. Sander vive há 33 anos na Inglaterra, onde é professor na University College London (UCL), e já publicou mais de 600 artigos científicos, quase 10% deles relacionados à Sudep.
Seu interesse no assunto surgiu de uma eventualidade ocorrida em 1993, quando Sander trabalhava como residente médico no hospital universitário da UCL. Durante um passeio, encontrou o irmão de um paciente que não havia comparecido a consultas recentes. Sander perguntou ao rapaz sobre a saúde do irmão e se surpreendeu ao saber que o paciente havia morrido inesperadamente. A notícia o deixou atônito. “Corri para o hospital e comecei a procurar o nome dos pacientes que haviam faltado às últimas consultas”, conta Sander.
Ele identificou cerca de 30 indivíduos que haviam deixado de ir ao hospital e escreveu uma carta para o médico de família de cada um deles. A descoberta de que a maioria estava morta transformou o seu modo de ver a epilepsia. Boa parte dos neurologistas considerava a doença um problema de saúde pouco grave. Muitos ainda pensam assim, mas não mais Sander. Nem Scorza. “Se não for tratada adequadamente, a epilepsia pode matar”, enfatiza o neurofisiologista da Unifesp, um dos poucos que investiga Sudep no Brasil.
Estima-se que existam 50 milhões de pessoas com epilepsia no mundo, cerca de 80% vivendo em países em desenvolvimento. Estudos feitos nos anos 1990 e no início da década passada indicam que a frequência de Sudep pode variar muito, dependendo da gravidade da epilepsia. Os números mais baixos, obtidos em levantamentos menos rigorosos, mostram que, a cada ano, entre uma e quatro pessoas podem morrer repentinamente em cada grupo de 10 mil indivíduos com epilepsia. As estatísticas mais aceitas, porém, apresentam números até 10 vezes mais elevados: haveria de uma a duas mortes por ano em cada grupo de mil. Essa proporção pode chegar a um em cada 100 entre as pessoas com epilepsia de difícil controle e número elevado de crises, candidatas a uma cirurgia que remove a área cerebral disparadora das tempestades elétricas no cérebro.
Ainda nos anos 1990, Sander e seus colaboradores na UCL iniciaram o acompanhamento de diferentes grupos de pacientes, alguns deles seguidos até hoje, e revisaram informações sobre centenas de pessoas com epilepsia que morreram. Eles também estabeleceram colaborações com pesquisadores da Europa, da África e da Ásia por meio das quais buscam conhecer quão comum é a Sudep. Nesse tempo, Sander e sua equipe descobriram padrões importantes que ajudaram a caracterizar essa forma de morte.
Um de seus primeiros achados, confirmado recentemente, é o de que a maioria das mortes repentinas ocorre à noite, em geral durante o sono. Quase sempre quem morre está sozinho e é encontrado com lesões que indicam a ocorrência recente de um surto, como marcas de mordida na língua. Essa constatação levou os médicos a fazerem uma recomendação geral: quem tem epilepsia, em especial não controlada por medicamentos, deve sempre que possível dormir acompanhado de um adulto. “Uma pessoa que esteja por perto pode impedir que o indivíduo se sufoque, caso sofra uma crise enquanto dorme de bruços. Também é possível que o simples toque de quem acompanha o paciente seja suficiente para que recobre os sentidos e volte a respirar depois da crise”, diz Sander.
Tormenta elétrica
A diversidade e a duração das crises variam muito. Algumas levam segundos e quase não são percebidas, por causarem apenas leves tremores ou um ligeiro movimento da cabeça, enquanto outras podem se estender por minutos e provocar desmaios e fortes contrações musculares. As mais graves são as crises tônico-clônicas generalizadas. Elas se iniciam com o funcionamento anormal de um grupo de neurônios altamente excitáveis, que passam a disparar sinais elétricos de modo sincronizado, gerando uma onda de ativação que toma o cérebro. Essa tormenta elétrica é acompanhada de uma descarga de compostos químicos que inunda o corpo. Vários hormônios são liberados, os batimentos cardíacos podem saltar de 60 para 180 por minuto e a pressão arterial sistólica, passar de 12 para 21 milímetros de mercúrio.
Durante esse tipo de crise é comum perder-se a consciência. A excitação dos neurônios faz os músculos contraírem vigorosamente e permanecerem retesados por alguns instantes – é a chamada fase tônica. A seguir, com a diminuição das descargas elétricas, inicia a fase clônica, em que os músculos relaxam e se contraem sucessivamente, fazendo o corpo contorcer. “É um período de horror que em geral dura de um a dois minutos”, resume a neurologista Elza Yacubian, professora da Unifesp e especialista em epilepsia.
Os médicos imaginam que, como forma de evitar a morte, o cérebro reage à ativação excessiva liberando neurotransmissores que acalmam os neurônios. Se essa reação for intensa demais, porém, ela pode desligar as áreas cerebrais que coordenam os batimentos cardíacos e a respiração, levando à morte por parada cardíaca, respiratória ou ambas.
Há seis anos Sander participou de um trabalho que analisou conjuntamente os resultados de quatro grandes estudos que haviam comparado as características das vítimas de Sudep com as de indivíduos com epilepsia que continuavam vivos. Ao confrontar os sinais apresentados por 289 pessoas que morreram subitamente com os de 958 que haviam sobrevivido, os pesquisadores encontraram diferenças importantes.
Um dos fatores que mais aumentou o risco de morte foi o número de crises epilépticas por ano. Ter de uma a duas crises tônico-clônicas generalizadas elevou em três vezes o risco de morrer repentinamente, de acordo com o trabalho, publicado em 2011 na revista Epilepsia. A probabilidade de morte súbita, porém, era oito vezes maior entre as pessoas que tinham de três a 12 crises por ano do que entre aquelas que permaneciam livres dos surtos. Acima de 13 crises o risco de morte era 10 vezes maior.
Outros dois fatores também influenciaram o risco de morte: o início precoce da epilepsia e o número de medicamentos usados para tentar manter a pessoa livre das crises, um indicador indireto da gravidade do problema. De modo geral, quanto mais grave a epilepsia, mais remédios precisam ser associados para controlar o problema, embora também exista uma suspeita não confirmada de que certas medicações possam aumentar o risco de morte. Esse estudo mostrou também que o risco de morte crescia ainda mais se, apesar do uso da medicação, a pessoa continuasse a apresentar crises.
Levantamentos que investigavam casos de paradas cardíacas súbitas, ocorridas sem que o coração estivesse previamente doente, sugeriam que o problema era até 20 vezes mais comum entre as pessoas com epilepsia do que entre aquelas sem o problema neurológico. Mais recentemente, a equipe do neurologista francês Philippe Ryvlin constatou que a interrupção da atividade cardíaca em geral era precedida de uma parada respiratória.
Ryvlin é pesquisador do Centro de Pesquisa em Neurociência de Lyon, na França, e do Centro Hospitalar Universitário Vaudois, em Lausanne, na Suíça, e coordena o projeto Mortemus, que acompanha em cinco países pessoas com epilepsia refratária ao tratamento. Na tentativa de descobrir os mecanismos por trás das mortes, ele e colaboradores reuniram informações sobre 29 casos de paradas cardiorrespiratórias e 16 de Sudep ocorridos após crises epilépticas. Nessa análise, identificou-se que logo após a crise epiléptica a respiração se tornava acelerada e, por vezes, era temporariamente interrompida, antes de cessar definitivamente, de acordo com os resultados iniciais do estudo apresentado em 2013 na revista Lancet Neurology.
Quase parando
Em 2013, o neurologista Veriano Alexandre, médico-assistente do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP), passou um ano em Lyon, na França, trabalhando com a equipe de Ryvlin em outro projeto. Lá, analisou os dados do eletroencefalograma de 69 franceses com epilepsia resistente aos medicamentos e constatou que, em alguns casos, a atividade elétrica do cérebro diminuía muito após a crise, como se o órgão estivesse parando de funcionar. Ele viu ainda que a diminuição dessa atividade poderia ser evitada se o paciente recebesse logo após o surto um suprimento de ar rico em oxigênio. Não se sabe se o problema aumenta o risco de Sudep, mas os pesquisadores recomendaram que, sempre que possível, se administre oxigênio durante e após a crise.
Sander conta que já desistiu de buscar uma causa única para as paradas cardíaca e respiratória associadas à epilepsia. “Está ficando claro que a Sudep é um problema multifatorial”, avalia.
Enquanto não se descobre mais sobre o problema, os médicos são unânimes em suas recomendações. O mais importante, dizem, é fazer o tratamento adequado para evitar as crises – os medicamentos controlam a epilepsia de modo eficaz em 70% dos casos. Eles também aconselham a manter hábitos saudáveis, como dormir em horários regulares e praticar atividade física, além de evitar o estresse excessivo, que pode desencadear crises. Em estudos com animais de laboratório, Scorza, da Unifesp, encontrou evidências de que o consumo de suplementos ricos em ácidos graxos ômega 3 exercem uma ação protetora sobre o cérebro e o coração.
Fonte: Revista Pesquisa Fapesp