O cérebro é maior do que o céu

Por Leandro Karnal

Você pegou o papel do jornal ou um aparelho em que o lê e focou o olhar nas linhas que seguem até o final do lado direito, retornando ao lado esquerdo de forma a forçar os olhos em um movimento treinado desde sua infância. Tudo se tornou tão natural que já perdemos a consciência do ato. Juntando consoantes e vogais, pontuação e acentos: as ideias foram surgindo na sua cabeça e estabelecendo memórias e novas conexões com pensamentos anteriores. É uma revolução silenciosa dentro do crânio e mudou tudo aquilo que você é.

Como funciona o ato de ler e, particularmente, em um mundo cada vez mais digital? O livro de Maryanne Wolf tenta responder a essa questão: O Cérebro no Mundo Digital – Os Desafios da Leitura na Nossa Era (Editora Contexto). O texto é fascinante e formatado no estilo de nove cartas muito diretas para o público mais amplo. O tema, leitura, desafios, a revolução digital e como funciona o cérebro que aprende a ler tornam a obra fundamental para pais, professores e, óbvio, qualquer pessoa letrada que deseje entender o mecanismo interno de interação entre letras e conexões de neurônios.

Maryanne Wolf diz ter sido tocada pelo mistério da leitura em um trabalho voluntário no Havaí. Tornou-se neurocientista e passou a pensar a complexidade de um processo fundamental no cérebro humano: o ato de acompanhar letras e ideias sobre um suporte. Ler é um dos mais transformadores atos epigenéticos, como diz a autora, ou seja, algo não natural, que existe fora do nosso DNA, mas transformou toda a estrutura encefálica.

O “cérebro leitor” tem de ser criado, não nasceu com a espécie humana e é, relativamente, um fato recente. Uma única letra identificada ativou, em velocidade assombrosa, grupos de trabalho altamente especializados em nossa cabeça. Você está lendo! Essa frase com um ponto de exclamação despertou, segundo a autora, um imenso sistema na região abaixo do crânio: dois hemisférios, quatro lobos em cada hemisfério e cinco camadas cerebrais com nomes sonoros como telencéfalo e mielencéfalo. Temos tudo isso, mesmo não sabendo seus nomes… Um verdadeiro “circuit du soleil”, termo divertido que compara a tenda da cabeça com o brilhante grupo circense do Canadá. Levando-se em conta que o leitor médio, eu e você, não somos neurocientistas, a norte-americana nos ajuda com desenhos e metáforas para entender como o olhar ativa um ciclo complexo e fascinante de forças-tarefa neuronais.

Em meio à leitura tradicional e milenar da espécie humana, surge o novo desafio de telas brilhantes com frases curtas e muitas imagens. Wolf afirma que é errado indagar sobre o futuro do livro de papel. O correto seria perguntar sobre o que acontecerá com o “leitor que fomos”, citando uma indagação de V. Klinkenborg na Carta Quatro.

Outro desafio ingente, tema da carta seguinte: como criar filhos leitores em época digital? O problema central é sobre um efeito que acompanha o excesso de informações da internet, especialmente a falta de foco. Nesse campo, a autora apresenta algo que eu desconhecia inteiramente: os trabalhos atuais sobre e-read e educação ou sobre como aproveitar os imensos recursos contemporâneos sem virar um reacionário suspirando por caneta-tinteiro ou papiro.

Vivi um pouco do jogo apresentado: depois que ela descreveu e nomeou alguns trabalhos no livro, fui procurar na internet sobre autores que estudam a questão da leitura digital e fiquei surpreendido, como sempre, pela vastidão da minha ignorância. Minha escolha: ler um livro em papel e complementar com pesquisa na internet mostra um ligeiro traço do que nosso “admirável mundo novo” pode proporcionar. Para os pais, cabe um cuidado entre o colo (lap) e o salto para o “laptop” no curioso jogo de palavras da Carta Seis.

O futuro apresenta riscos e belezas inimagináveis. A autora explora e defende a possibilidade de um cérebro “duplamente letrado”, pesando os ganhos imensos das gerações jovens com medidas para controlar o que for menos interessante, combinando os processos tradicionais e as novas formas. Ela acha que telas e papel, digital e analógico podem conviver bem. Parece impossível? Ela evoca a biografia de Elon Musk: impossível pode ser chamado de fase um.

A carta final fala de tempo, alegria, contemplação e felicidade da leitura. É o texto menos técnico e mais poético de todo o livro. Cumpre bem a expressão latina que Italo Calvino usa (Seis Propostas para o Próximo Milênio): festina lente, apressar-se devagar.

O ato de ler e de escrever é acalmar o olhar ansioso e a mente irrequieta (especialmente hoje) e dar o tempo de meditação e a pausa para densidade que requer o ato de assimilar textos e de pensar. Festina lente, abandonar a impaciência e a contingência efêmeras e entregar-se à bela expressão do poema de Emily Dickinson que dá nome a essa crônica: The Brain Is Wider Than the Sky.

O cérebro é sempre maior do que todo céu e ler nos concedeu muitos privilégios. A escada de Jacó para meu empíreo de leitura (o texto belíssimo de Maryanne Wolf) durou cronometrados 234 minutos. Foram quase quatro horas sentado, indo e voltando de Natal (RN), de lápis na mão, anotando passagens e pensando em alguns trechos. Festina lente!

Um elogio final ao cuidadoso trabalho dos tradutores Rodolfo Ilari e Mayumi Ilari. As notas ajudaram muito e o texto não tranca nos tradicionais “espasmos semânticos” de traduções rápidas. Boas leituras e um excelente domingo para todos nós!

Fonte: Estadão