O Futuro da Recuperação na Lesão Medular

Existem poucas injúrias tão devastantes que acometem o ser humano quanto aquelas causadas pelas lesões da medula. Sua incidência chega 250 a 500 mil casos de pessoas sofrendo uma incapacidade permanente a cada ano. As causas mais comuns são acidentes de trânsito, ferimentos por arma de fogo, quedas de altura e acidentes recreacionais. A medula espinhal é a grande “auto-estrada” por onde passam todas as informações que comunicam nosso cérebro com o resto do corpo, suas células nervosas não conseguem se regenerar, por este motivo quando a medula é acometida de um dano (traumático ou outros) ela dificilmente se recupera.

Nestas lesões a extensão do dano apresentado pelos pacientes é determinado não apenas pela extensão do trauma físico, mas também pela resposta imune/inflamatória secundária. A inflamação subsequente, perda de fluxo sanguíneo e consequente morte celular, desempenham um papel significativo na extensão total dos danos neurológicos, bem como nas perspectivas de recuperação pois o crescimento das fibras nervosas é bloqueado pelo tecido cicatricial e por processos moleculares que ocorrem dentro dos nervos. A paralisia ocorre abaixo do nível acometido e, como a patologia se torna crônica, os pacientes podem sofrer de doenças secundarias como infecções do trato urinário, doenças respiratórias e depressão. O impacto econômico, social e psicológico são enormes para o indivíduo e a sociedade.

A aflição e sofrimento decorrente das fraturas na coluna e consequente lesão da medula espinhal atraem o interesse da comunidade médica desde o nascimento da civilização. A primeira referência a lesão da coluna/medula espinhal foi encontrada no Papiro de Edwin Smith. O documento datado de 2500 A.C. e obtido pelo egiptologista que o batiza em 1862, é a primeira parte de um livro sobre lesões corporais. O livro é composto de uma série de 48 casos que fornecem informações sobre a medicina egípcia daquela época remota. 06 relatos referem-se a lesões da coluna vertebral sendo um deles o primeiro relato de caso de uma lesão da medular:

“Se examinares um homem com um deslocamento de seu pescoço, deverás achá-lo sem consciência de seus dois braços e de suas pernas por causa dele… É uma luxação de uma vértebra de seu pescoço estendendo-se a sua espinha dorsal que o faz ser inconsciente de seus dois braços… Devias dizer a respeito dele…Uma doença que não deve ser tratada” (tradução livre)

“Uma doença que não deve ser tratada”, foi a conduta médica por vários séculos pois o conhecimento avançava lentamente e, apesar do avanço e do surgimento de várias teorias sobre o tratamento, perdurava o entendimento de que essa era uma patologia com “prognóstico sombrio”. Como escreveu Guy de Chauliac (1300-1368), considerado o Pai da Cirurgia Moderna: “Não se deve trabalhar para curar a paralisia decorrente da lesão da medula espinhal”, uma atitude similar aos colegas que o precederam por 3 mil anos.

Somente com os avanços da cirurgia moderna, anestesiologia e microbiologia (descoberta dos antibióticos) e do conhecimento do processo patológico que se sucede após a lesão da medula espinhal, nos séculos 19 e 20, é que o entusiasmo da comunidade médica começou a mudar de “uma doença que não deve ser tratada” para uma doença que “pode ser tratada”. Durante este século, o papel do atendimento pré-hospitalar, com o rápido transporte as unidades hospitalares e rápida estabilização dos seguimentos espinhais instáveis, levou a uma decréscimo nas lesões permanentes e mortalidade nesta população. As recentes evoluções e técnicas nas medicina intensiva também colaboraram no manejo de pacientes por vezes muito graves e complexos.

Talvez os maiores avanços tenham sido a evolução das técnicas de fisioterapia e reabilitação. Após o entendimento de que pacientes com lesão medular deviam ser vistos como pessoas com problemas em múltiplos sistemas (neurológicos, urológicos, ortopédicos, psicológicos, sociais) e da criação de grandes centros de reabilitação e tratamento específicos, liderados por Donald Munro (1898-1978), é que o prognóstico e qualidade de vida do lesado medular tiveram um acréscimo substancial em quantidade e qualidade.

Os tratamentos atuais consistem em diminuir esse dano secundário oferecendo uma gama que vai da utilização de medicamentos para diminuir inflamação, ao controle da dor até as intervenções cirúrgicas com propostas diversas como estabilização e, principalmente, redução da pressão sobre a medula espinhal, restabelecendo o fluxo sanguíneo e atuando diretamente na prevenção da lesão secundária. Atualmente não existem terapias que restaurem completamente a função após uma lesão medular. O melhor entendimento do processo patológico secundário a lesão primária está evoluindo rapidamente e vários tratamentos estão sendo estudados para atuar na prevenção da cascata inflamatória e dos processos moleculares.

Os maiores avanços (experimentais) estão no campo da neurobiologia. A descoberta das células-tronco e sua aplicação nas lesões medulares parece ser promissora, uma vez que estas células podem se transformar em qualquer tecido, existe um potencial significativo para reconstruir o tecido nervoso perdido. Reparar a medula espinhal lesada talvez seja o maior desafio da comunidade neurocientífica, seja estimulando o crescimento das células remanescentes ou criando “pontes neurais”que preencham o tecido danificado e restabeleçam a conexão neural.

O entendimento do papel inibitório de certas células do sistema nervoso central na regeneração do axônios, pode levar ao estudo de substâncias que bloqueiem essa inibição. Clinicamente, estimulação neuromuscular funcional pode oferecer ao paciente um controle direto sobre várias porções do seu corpo através de conexões computadorizadas e impulsos elétricos. Experimentos com exoesqueletos robóticos e outros auxiliares em casos graves de paralisia tem vindo recentemente a tona. São sistemas importantes não só para restaurar movimentos, mas também para exercitar sistemas musculares paralisados com grandes benefícios cardiovasculares. O desenvolvimento dessas áreas podem gerar grandes oportunidades no futuro.

Grandes avanços no tratamento ocorreram no último milênio, porém nem toda fisiopatologia de lesão medular é completamente compreendida. Múltiplas modalidades terapêuticas estão sendo avaliadas porém sem nenhum inequívoco sucesso. Talvez o uso de terapias multimodais seja necessário para que no futuro a lesão da medula espinhal seja “uma doença a ser tratada e curada”. Não esquecendo que talvez nosso maior desafio seja a prevenção, por este motivo devemos assumir um papel de educadores do público geral, incluindo crianças, adolescentes e nossos legisladores, buscando um equilíbrio entre conscientização e cautela.