O cérebro – e não o espaço – é a próxima grande conquista da Humanidade. O que separa o mundo de hoje da possibilidade de que o seu cérebro possa sobreviver por muitos anos conectado a um corpo robótico ou no universo da realidade virtual está sendo discutido e perseguido por milhares de neurocientistas, médicos e bioengenheiros. O desenvolvimento de ferramentas que permitirão a leitura das informações contidas em nossos neurônios pode levar de 30 a 100 anos, dependendo com quem se fale. Ou da pressa do Vale do Silício.
O desafio que está empurrando cientistas tem nome: brain uploading ou whole brain emulation. Em termos gerais, é a possibilidade de digitalizar um cérebro – com seus pensamentos, capacidade de aprender e de criar – e inseri-lo em um computador. Nos filmes de ficção-científica já aconteceu, mas é possível no mundo real? Alguns cientistas garantem que sim. Para isso é preciso um tripé formado por computadores poderosos, ferramentas para mapear e digitalizar a ultra complexa rede de neurônios e neurocientistas capazes de decodificar essa linguagem.
Entre os que querem acreditar está o neurocientista e neuroengenheiro holandês Randal Koene, que advoga a ideia desde meados dos anos 1990. Ele mantém presença (agora mais reduzida) na Carboncopies, organização sem fins lucrativos que procura espalhar a ideia de que todos nós, um dia, poderíamos ter uma versão digital. “Muitos neurocientistas, médicos e filósofos não acreditam que seria possível digitalizar informação a partir do cérebro de uma pessoa, decodificar e inserir em um computador, de modo que a máquina replicasse o seu pensamento. Eu acho que tecnicamente isso se tornará possível e seremos capazes de chegar lá nos próximos 100 anos”, afirma Keith Wiley, da Carboncopies. “A questão é se aceitarão o resultado desse processo como a sobrevivência de uma pessoa ou se vão interpretar como algo completamente diferente.”
Os cientistas contam com um empurrão das empresas de tecnologia, que enxergam aí um negócio a ser explorado. “No mínimo, esses novos investimentos vão produzir uma série de ferramentas que serão muito úteis para a ciência e para fins biomédicos, talvez até para brain enhancing (aprimoramento cerebral)”, afirma o neurocientista e pesquisador sueco Anders Sandberg, da Universidade de Oxford, no Reino Unido. O fato de que há empresas interessadas é um ponto positivo para ele, já que os cientistas estão menos preocupados com prazos, enquanto as companhias trabalham com metas e objetivos claros.
A aplicação médica de tais ferramentas vem sendo testada em diferentes projetos ligados a empresas e centros acadêmicos, muitos envolvidas em projetos como Brain Initiative e Human Brain Project. Theodore Berger, neurocientista e professor da University of Southern California (USC), nos Estados Unidos, vem trabalhando há vários anos no desenvolvimento de implantes de cérebro capazes de recuperar memórias de longa data. Em algum momento, esses implantes seriam usados em todos os pacientes com doenças degenerativas, como Alzheimer e Parkinson. E poderiam ser um canal de desenvolvimento para o aprimoramento cognitivo – a capacidade de implantar conhecimento no cérebro humano.
“Há uma cena muito interessante em Matrix, em que um personagem pergunta a outro ´Você consegue pilotar aquele helicóptero?`. E ela responde:´Ainda não` [e no momento seguinte, após o upload de conhecimento, é capaz]. Será maravilhoso”, imagina Sandberg. Apesar disso, ele adianta que conhecimento e habilidade são coisas diferentes no cérebro humano. “Não funciona da mesma maneira que um software num computador, nós não somos máquinas.”
A dificuldade no avanço de tecnologias capazes de reconstruir ou ampliar as capacidades cerebrais esbarra justamente no que nos torna humanos: cada indivíduo possui padrões próprios de pensamento. Mesmo gêmeos não pensam do mesmo modo. “Neurônios são uma coisa viva, por isso talvez não sejamos capazes de replicar um cérebro, a não ser que replicássemos a vida em si. Mesmo em gêmeos idênticos, repare que cada um deles tem sua própria personalidade porque seus cérebros são diferentes”, afirma o pesquisador Rafael Yuste, professor da Universidade de Columbia, nos EUA.
Como “máquinas biológicas”, os seres humanos têm sido submetidos há anos a métodos de propaganda (não somente para vender sabão em pó ou hambúrguer) que tentam influenciar o cérebro numa determinada direção. “O que é diferente agora é que essas tecnologias que estão sendo desenvolvidas para ler e influenciar a mente das pessoas serão 100 vezes mais poderosas por compreender o que as pessoas estão pensando e na maneira de influenciar seu pensamento”, diz Yuste.
Privacidade e individualidade na nova era
Mesmo com a possibilidade de acesso aos pensamentos algumas décadas longe de acontecer, a questão da privacidade já é central nos debates entre pesquisadores, filósofos e representantes da indústria tecnológica. Qual é o limite para se permitir que alguém veja seus pensamentos? A “privacidade neural”, como alguns já a chamam, como os avanços anteriores da medicina, tem defensores para o bem e para o mal.
O onipresente Grande Irmão, do romance 1984, de George Orwell, que deu origem ao conceito do programa Big Brother na televisão, teria a chance de sair da sala de estar para entrar diretamente no córtex cerebral. “Uma coisa é as pessoas quererem ver o que você está fazendo na sua casa, isso já é ruim, mas ver o que se passa na sua cabeça, é muito sério”, afirma Sandberg. Ele acrescenta, porém, que o debate atinge questões “interessantes” que vão além da moral e da ética. “E se você pudesse dizer se alguém é culpado ou não de um crime, isso não ajudaria a justiça? Talvez haja situações totalmente legítimas em que é preciso checar se alguém é, de fato, culpado de algo que está sendo acusado. Então não é sempre óbvio que é errado olhar dentro da mente de alguém. Para isso, é preciso que as coisas aconteçam dentro da estrutura moral certa.”
No caso, a estrutura resume-se a um ponto: é preciso permissão do indivíduo. Simples? Nem tanto. Com ferramentas que permitiriam adentrar pensamentos também vem a possibilidade de manipulação, que poderia ocorrer sem que o indivíduo tivesse conhecimento disso. O que leva à questão de segurança: da mesma maneira que os cientistas perseguem as ferramentas para ler e decodificar a linguagem dos neurônios, eles precisam de softwares sofisticados que impeçam o hackeamento de mentes.
Muitos softwares de marcapassos cerebrais (que já são usados contra Parkinson e estão sendo testados em pacientes com depressão) possuem conexões wi-fi. “Mas não contam com firewall”, diz Sandberg. “Eles são totalmente hackeáveis”. Ao que se sabe, isso nunca aconteceu. “Mas isso é uma questão de tempo, a menos que nós melhoremos e muito a segurança.”
A nova era da tecnologia cerebral implica em uma nova revolução para a humanidade. Pela primeira vez, os seres humanos serão capazes de entender a si mesmos e suas motivações, de maneira científica. “Eu vejo isso como uma revolução em termos de tecnologia, economia e ciências”, afirma Rafael Yuste. Da mesma maneira que as descobertas do Projeto do Genoma Humano, realizado de 1990 a 2003, levaram à criação de uma indústria baseada em medicamentos personalizados criados a partir do sequenciamento do genoma, ele acredita que um campo imenso se abrirá a partir da neurotecnologia decorrente da compreensão do cérebro. “Muita gente vai ficar rica, assim como aconteceu com os medicamentos farmacêuticos e com a genômica. Em todos esses casos, as empresas empregaram tais métodos para ajudar as pessoas. E nós, como cientistas, temos a responsabilidade de garantir que esses primeiros passos sigam na direção certa.”
Ou, como ele prefere dizer: “Acho que será uma nova Renascença”.
Fonte: Época Negócios